Historiadora Rosa Cruz e Silva: “Não temos de nos envergonhar dos nossos próprios símbolos”

A Netflix abre quinta-feira, 11 de Maio, a segunda temporada da série “Africa Queens”, cuja primeira, lançada em Fevereiro, focou-se na vida guerreira e diplomata de Njinga Mbande, protagonizada pela actriz Adesuwa Oni. Num dos episódios, a historiadora Rosa Cruz e Silva é uma das personagens com depoimentos fortes e bastante emocional. Em entrevista ao Jornal de Angola, a historiadora relata os momentos chave em que passou para integrar a produção cinematográfica e fala do impacto e omissões do drama histórico

Em que contexto surgiu em Angola a proposta estrangeira para produção da série documental sobre Njinga Mbande?

A minha participação no projecto da Nutópia, empresa britânica que produziu esta série para a Netflix, decorre do trabalho realizado enquanto investigadora e depois como directora do então Arquivo Histórico Nacional. Lembro-me que o primeiro texto que produzimos sobre Njinga Mbande foi em 1991. O Museu Nacional de Antropologia publicou no âmbito das actividades que realizávamos em conjunto entre o Museu e Arquivo Histórico. Daí em diante outros trabalhos foram surgindo sobre a soberana Njinga Mbande, que levaram, inclusive, à reconstituição da sua imagem e que redundou numa estátua. Para além disso, as reuniões internacionais sobre História de Angola, realizadas em Luanda com a participação de historiadores renomados de História de África e de Angola, esses eventos trouxeram a debate a problemática das figuras históricas não só de Njinga Mbande, mas de outras figuras, algumas das quais já se fizeram a reconstituição das respectivas estátuas. Falo de Ekwikui II, de Mandume, e do soberano Mwene Venongue do Cuando Cubango. Relativamente ao soberano do Kongo, Nvita a Kanga não resultou em estátua, embora exista uma maquete.

 

Quer dizer que os historiadores angolanos começam a estudar com profundidade as figuras históricas dos antigos reinos de Angola sob motivação desse projecto cinematográfico da produtora Nutópia?

Não. Este projecto da valorização e divulgação das Figuras Históricas em Angola que iniciou com a produção de estátuas é muito anterior ao Projecto da Nutópia. Os estudos foram iniciados na década de 90, e deram mais luz e conhecimento de um conjunto dessas figuras dos vários contextos sócio-culturais de Angola. Foram objecto de tratamento, nomeadamente de pesquisa, e investigação histórica. Assim que, quando essa empresa resolveu fazer a série "African Queens", contactou o professor John Thornton, especialista do Reino do Kongo, e a esposa Linda Heywood, que publicou um livro, recentemente, sobre a Rainha Njinga, provavelmente em 2018. Foi a partir desse contacto que chegaram a nós.

 

Foi a partir dessa altura em que recebeu o convite para ser uma das personagens da série documental "African Queens: Njinga”?

Exactamente. A partir do contacto dos professores que já vinham trabalhando connosco no Arquivo Histórico, de então, com a sua participação nos Encontros de História de Angola realizados no nosso país. Eu manifestei, naturalmente, a minha disponibilidade para contribuir, e tivemos várias sessões online, porque, como vocês sabem, a figura de Njinga Mbande ainda provoca alguma controvérsia que decorre da interpretação dos portugueses numa perspectiva colonial, pois enquanto sua inimiga ela foi muito mal-tratada.

 

Como assim, trataram-na "muito mal”?

Como grande inimiga que foi dos portugueses, e no decurso da sua actuação marcada pela grande resistência militar que ofereceu nos vários confrontos que teve de enfrentar, criou-se uma imagem de Njinga Mbande muito penalizadora. Imperava o ódio dos europeus relativamente os africanos que resistiam à sua pretensão imperial. Assim,  a minha contribuição foi, também, no sentido de esclarecer muitos dos pontos nevrálgicos dessa temática, o que fizemos com base na documentação que conhecemos, e que consultamos, sendo que uma boa  parte deste material já está disponível, porém, razões de vária ordem levaram com que muitos historiadores não olhassem com atenção para essa documentação.

Assim, o quê que eu posso dizer relativamente à produção em si, que teve a contribuição de vários investigadores, vários historiadores mas, obviamente, que estas produtoras depois fazem as suas opções, relativamente aos grandes temas. Esta produção não retratou toda a vida de Njinga Mbande. Mas, existem aspectos importantes da sua trajectória que não foram abordados na historiografia mais conhecida, e que nesta série foram bem tratados.

 

Quais são esses pontos?

Isso para nós é muito importante, eu acredito que vão surgir muitas outras versões, aliás, antes dessa já tivemos duas: a primeira foi feita em Nova Iorque, a segunda foi feita cá, em Angola, por angolanos, mas mesmo assim não houve a preocupação da intervenção de vários historiadores para que a versão entrasse na profundidade dos temas principais.

Para concluir, foi uma boa iniciativa, obviamente que há falhas, mas eu penso que o essencial, aquilo que tem justamente a ver com a perspectiva de dentro está ali retratado.

 

No decurso da entrevista há um momento em que chora. A que se deve essa forte emoção?

A minha entrevista foi muito grande. Foi um dia intenso de trabalho, nós começámos a gravar às 9 horas, e terminámos às 18 horas, com uma ligeira interrupção para o almoço, não terá demorado meia hora. Foi menos de meia hora a interrupção.

Quando nós acabámos o trabalho foi feita uma pergunta final, mas a emoção não esteve só comigo…toda a equipa, desde os câmeras-man, o próprio produtor, houve ali um ambiente muito forte de emoção, que decorre, penso, da abordagem que nós fizemos àquela cena em que a irmã de Njinga Mbande é lançada ao rio por ter sido descoberta a sua acção de espionagem pela correspondência que ela manteve com Njinga Mbande, sendo que essa correspondência tinha dados militares que favoreciam a estratégia da soberana do Ndongo e Matamba.

Os portugueses nunca conseguiram, apesar de toda a sua força, toda a sua capacidade militar, não conseguiram nunca apanhar à mão Njinga Mbande como pretendiam os seus inimigos. As suas duas irmãs foram capturadas e levadas em prisão para Luanda.

 

O que esteve na base da incapacidade das tropas coloniais portuguesas?

Penso que isto tem a ver com as estratégias que Njinga adoptou. Umas mais bem sucedidas que outras, mas alguma antecipação decorrente das informações que recebia da sua irmã por um lado, conjugado com as alianças que efectuou com os Imbangala e, também, com os holandeses de quem recebeu ajuda militar. Foram factores de peso que retardaram a queda do Ndongo. Os textos que conhecemos da historiografia que está hoje disponível, estes temas não mereceram o devido destaque.

Na abordagem desta temática, todos nós nos emocionamos e quando chegou o final… (risos), eu não me consegui conter. Portanto, a equipa toda emocionou-se, todos nós deitamos uma lágrima, nos emocionamos no final da entrevista porque tratou-se de vários aspectos, vários…

 

Quais sãos os outros aspectos referenciados na entrevista?

A problemática do canibalismo, pois há bibliografia, não só portuguesa mas também de outros autores estrangeiros, que diabolizam os ritos africanos. A questão da utilização do sangue com o sacrifício de animais, como forma de fortalecer os homens nos momentos difíceis da vida, rapidamente foi levada para a classificação de canibal. Por essa razão, foi necessário fazer uma explicação, ainda que sumária, da inexistência de canibalismo nas acções de Njinga Mbande e dos seus súbditos.

 

E por que razão alguns autores estrangeiros aludem acções de canibalismo à Njinga Mbandi?

A questão do canibalismo tornou-se efectivamente num mecanismo de propaganda que os europeus utilizaram para diabolizar Njinga Mbande. São essas cenas, essas questões, um pouco dramáticas que eles exploraram muito, pois vejo agora na série que está a ser emitida pela Netflix.

 

"Njinga Mbande sabia falar português”

A sociedade angolana demonstra ou não sensibilidade – interesse – nessas questões de índole histórica que remontam há vários séculos?

Eu penso que sim, mas precisamos de trabalhar mais para que este exercício se torne uma prática regular. Para assinalar os 350 anos da sua morte, nós fizemos uma exposição muito grande sobre Njinga Mbande, que esteve patente nas províncias de Luanda, três meses, Cuanza-Norte, Malanje, esteve na Huíla e depois no Namibe e ficou perdida por lá. Esta exposição tinha, justamente, o condão de mostrar aos estudantes a trajectória de Njinga Mbande através da documentação escrita que existe para que eles se interessassem no estudo, na investigação dos documentos.

Há alguma narrativa que conta a vida de Njinga Mbande mas que dá ênfase a essa produção escrita. Postei há dias, no Facebook, uma das cartas dela e uns internautas diziam assim: "essa letra tão bonita nem parece letra de mulher…, onde é que ela aprendeu a ler, onde aprendeu a escrever?”  É preciso abordar com profundidade para nós percebermos que é assim, tal como no Congo, no reino do Ndongo também teve um início de produção da escrita e aprendizagem da leitura da língua portuguesa.

Portanto, nós consideramos que Njinga Mbande quando foi a Luanda negociar com João Correia de Sousa já sabia falar português, isso em 1622, mas a aprendizagem ocorreu quando era menina, quando a primeira e segunda missão dos portugueses, nomeadamente a missão dirigida por Paulo Dias de Novais, que esteve cativa no Ndongo com alguns missionários.

Os missionários ensinaram algumas pessoas a ler, e esse fenómeno ganhou uma dimensão tal,  porque as chefias perceberam a importância da escrita, e prontamente passaram a utilizar a escrita. É assim que até hoje nós temos nos Dembos documentação produzida pelos próprios Dembos desde o Século XVII.

Portanto, esta problemática não vem devidamente reportada nas obras de  História de Angola mais recentes, mas é preciso falar na base, como é que isso surgiu, e como é que evoluiu.

 

Que importância atribui a esses episódios históricos da Netflix para as gerações actuais e vindouras?

Penso que nós devemos nos preparar para continuar a abordagem das figuras históricas, as femininas que são sempre muito esquecidas. Para além de Njinga Mbande precisamos de falar mais de outras figuras e, também, dos homens, dos nossos soberanos, para que não haja mais vergonha, veja que a estátua da rainha Njinga está a ser consagrada, a ser usada no exterior mas nós temos vergonha…, aqui a nossa estátua é desvalorizada, por que ela está descalça, não tem coroa… (risos), esquecemos que cada povo, cada contexto tem os seus próprios símbolos, e nós não temos de nos envergonhar dos nossos próprios símbolos.

 

Conselhos aos realizadores

Que conselhos para os realizadores angolanos sobre a produção de documentários (filmes) históricos?

Eu acho que nós devemos continuar a desenvolver projectos que concorram para um maior conhecimento da nossa História. Sabemos que já foi feito aqui no país um primeiro exercício - o filme "Njinga Mbande" - pela Semba Comunicação, mas a parte dos protagonismos é preciso ouvir os especialistas. Mesmo quando eles, por razões de vária ordem, entram em contradição, é preciso explorar documentos, dar a conhecer os documentos porque eles existem. Por exemplo, a temática da Njinga que referi durante  a entrevista relacionada com a documentação escrita por ela, e  é extensiva tanto para os documentos que escreveu para os governadores como, também, para Sua Santidade o Papa.

Quando Njinga Mbande faz a sua conversão, ela tem correspondência com o Papa. As cartas estão publicadas, existem…esses factos não passaram com o destaque devido, não foram retratados na série anterior. Até hoje creio que não passou em série nenhuma.

Eu penso que, quando os especialistas do cinema e da televisão se prontificarem para a realização de projectos desta natureza não poderão fazer bem sem a participação dos historiadores, para reportarem com mais precisão os factos que tiveram lugar nos variados contextos da luta para a preservação da soberania dos africanos.

 

Sinopse e crítica da série "African Queens”

"African Queens” (Rainhas Africanas) é uma série documental histórica com foco em monarcas femininas do continente africano, exibida no serviço de streaming Netflix.  A série é produzida e narrada por Jada Pinkett Smith, e apresenta encenações históricas dramatizadas, bem como entrevistas com especialistas renomados.

A primeira temporada estreou a 15 de Fevereiro último, e focou em Njinga , Rainha do Ndongo e da Matamba, protagonizada ela actriz Adesuwa Oni, modelo, nascida a 24 de Junho de 1989, de nacionalidade britânica.  Combina recriações dramáticas com entrevistas discutindo os eventos, como a primeira temporada apresentando a professora associada do Wellesley College no Departamento de Estudos Africanos Kellie Carter Jackson.  Também foram entrevistados Diambi Kabatusuila , actual líder do povo Bakwa Luntu, e Rosa Cruz e Silva, ex-diretora do Arquivo Nacional de Angola e ex-Ministra da Cultura, entre 2008 e 2016 .

A segunda temporada tem estreia marcada para quinta-feira, 11 de Maio de 2023, e tem como foco a rainha egípcia ptolomaica Cleópatra VII . Cleópatra vai ser interpretada por Adele James, cuja pele escura causou polémica sobre a raça de Cleópatra.

Ellen E. Jones, do The Guardian , criticou a primeira temporada, premiando-a com duas de 5 estrelas, dizendo que: "Este conto de uma governante africana do Século XVII apresenta académicos impressionantes, mas eles são abafados por dramas de baixa qualidade, sequências,. falta de contexto, análise ou personalidade."

 Angie Han do "The Hollywood Reporter" também foi crítica, dizendo que o formato limitava a capacidade de se aprofundar no assunto.

Luke Peppa, do "Financial Times", citou o Pantera Negra como um divisor de águas para contar histórias africanas, e que muitas das histórias do continente africano não foram contadas.  Richard Roeper do "Chicago Sun-Times" , no entanto, elogiou a série e deu-lhe três de quatro estrelas.

O egiptólogo e ex-ministro de antiguidades do Egipto, Zahi Hawass, criticou a segunda temporada com foco na série Cleópatra. Ele disse: "Isso é completamente falso. Cleópatra era grega, o que significa que ela tinha pele clara, não negra", acrescentando que "a Netflix está tentando provocar confusão ao espalhar factos falsos e enganosos de que a origem da civilização egípcia é negra". 

Um advogado egípcio também processou para bloquear a Netflix no país, alegando que a Netflix estava promovendo o afrocentrismo e tentando apagar a história egípcia. Rebecca Futo Kennedy, professora associada de Clássicos na A Universidade Denison, no entanto, disse que "perguntar se alguém era 'negro' ou 'branco' é anacrónico e diz mais sobre investimentos políticos modernos do que tentar entender a antiguidade nos seus próprios termos”.

O secretário-geral do Conselho Supremo de Arqueologia, por meio do Ministério de Turismo e Antiguidades do Egipto, divulgou uma declaração sobre o assunto, dizendo que "a rainha Cleópatra tinha pele clara e (tinha) características helénicas”. Eles citaram moedas, estátuas e outras representações de Cleópatra como evidência, acrescentando "longe de qualquer racismo étnico, enfatizando o respeito total pelas civilizações africanas e por nossos irmãos no continente africano que nos une a todos”.

A directora Tina Gharavi defendeu o casting para os documentários afirmando: "Fazendo a pesquisa, percebi que acto político seria ver Cleópatra interpretada por uma actriz negra".

 

Género: Drama histórico (série documental)

Elenco: Adesuwa Oni, Eshe Ashante e Craig Russel

Música: Michael Mikey J. e Asante

País de origem: Estados Unidos e Reino Unido

Temporadas: 2

Episódios: 8

Produtor executivo: Jada Pinkett Smith

Realizador: Sean Francis

Duração: 45 minutos

Produtoras: Duna Filmes, Netflix e Nutopia

Pedro João Cassule Manuel Manuel

• Desejo fazer parte da equipe e actuar na ária de informática. Acredito que poderi executar meus conhecimentos teóricos e práticos e ajudar no crescimento da empresa e do grupo de trabalho.

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