Cónego Manuel das Neves na luta de Libertação Nacional


Agradeço antes de mais ao Jornal de Angola, designadamente na pessoa dos seu diretor Drumond Jaime, que há anos identifico no seu trabalho jornalístico com Helder Barber, pelo convite que me permite estar aqui convosco, cerca de trinta anos depois de por este país ter andado em apoio à gestão de diversas empresas angolanas .

De facto, embora licenciado em História a minha vida profissional orientou-se por outros caminhos. Voltei à História após a aposentação e, entre outras coisas menores, com a publicação de um trabalho de pesquisa sobre o Cónego Manuel das Neves. Uma incursão nos arquivos à guarda da Torre do Tombo em Lisboa pôs-me em contacto com um, então para mim, misterioso cónego da igreja angolana que a PIDE forçara a desligar-se das suas obrigações canónicas e desterrara para o continente português. Após mais de um ano de pesquisa publiquei, em finais de 2017, "O Cónego Manuel das Neves - Um Nacionalista Angolano. Ensaio de Biografia Política.”

Alarguei mais tarde a minha pesquisa ao conjunto de outros clérigos igualmente empenhados na luta de libertação nacional e, por isso, também vítimas de repressão política por parte das autoridades coloniais. Tratava-se de um conjunto de padres, alguns dos quais igualmente proeminentes na estrutura da eclesia angolana, todos de origem africana e a que aquelas autoridades dedicaram perseguição continuada, que culmina com o seu prolongado afastamento do território angolano. De facto, apesar do mais destacado papel de Monsenhor Manuel das Neves, não é possível assinalar o seu percurso político sem compreendermos o contexto em que o seu ativismo se inseriu, mormente no que respeita à estrutura eclesial de que fazia parte.

Um dos ativistas da luta de libertação, Chico Adão, dizia por ocasião das exéquias de  Monsenhor Manuel das Neves, depois de se referir a este em particular:

«A classe missionária africana quer da Igreja Católica Apostólica Romana quer da Igreja Metodista de Angola e da Igreja Adventista deu um contributo ímpar à luta clandestina de Libertação Nacional. Negar, ou remeter para plano secundário, figuras da Igreja como o então Monsenhor Joaquim Pinto de Andrade, Padre Alexandre do Nascimento, Padre Vicente, Reverendo Domingos da Silva, Professor Nobre Pereira Ferreira Dias como dizia, remeter para plano secundário figuras como estas de entre as quais acabamos de citar, é negar a própria história de libertação do nosso País.»

Esta afirmação coloca a par as iniciativas missionárias católicas e protestantes no seu contributo, como diz, para a "luta clandestina de Libertação Nacional."

São muito bem conhecidas as atividades das missões protestantes até porque os dirigentes das respetivas Igrejas as descreveram, sobretudo na sequência da violenta repressão de que foram alvo após as insurreições de Fevereiro e Março que assinalam o início da revolta armada angolana. Para as autoridades portuguesas, as missões protestantes eram um elemento preponderante no estímulo à insurgência, numa atitude continuada de "desnacionalização" e de desprezo pela "portugalidade", cuja exaltação seria, pelo contrário protagonizada pelo clero católico.

De facto, o clero católico e em especial o missionário estava vinculado ao cumprimento do normativo estabelecido pelo Estatuto e Regulamento Missionário que o Estado português havia protocolado em 1940/1 com a Igreja Católica. Estes instrumentos regulatórios do processo evangelizador previam generosos apoios a uma atividade missionária, a que se impunha, em contrapartida, a defesa da colonização portuguesa na sua inteireza constitucional e no propósito de "portugalização" dos indígenas.

Estas obrigações conflituavam com o ambiente crescentemente contestatário da colonização portuguesa que se vivia designadamente em Luanda ao longo da década de 50 e princípios da de 60 e de que participava também uma parte do clero nativo que entretanto se formara nos Seminários diocesanos. De facto, a regulação do papel da Igreja em contexto colonial, seguida obvia e maioritariamente por um corpo missionário educado na obediência hierárquica, viria a ser contestada por algum clero secular nativo. Esses sacerdotes estavam confrontados com a flagrante contradição entre essa missão dita "civilizadora" e o curso do processo descolonizador que a crescente confrontação política vinha engrossando e da qual participam  enquanto membros qualificados da comunidade africana. Nos anos cinquenta «uma franja do clero angolano denunciava à luz da fé cristã, a situação de pobreza e de exclusão social das populações angolenses, vítimas da violência e da coacção do poder colonial», marcando uma flagrante contradição com o discurso oficial que a Igreja Católica portuguesa não abandonaria, mesmo perante a vaga independentista, que foi entretanto submergindo os poderes coloniais em África, e face às mudanças eclesiais que viriam a ser acolhidas pelo Concílio Vaticano II.

Em 1960 e 1961, em circunstâncias diversas, foram presos alguns e todos afastados do território angolano nove sacerdotes católicos, negros ou mestiços, de origem «indígena». A tenacidade com que a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) vigia e reprime este segmento do clero católico angolano é reveladora do perigo «para a ordem e tranquilidade públicas» que se lhe reconhecia e de que a polícia, acabada de se instalar na colónia, se vai apercebendo ao longo dos últimos anos da década de 50. De facto, fortemente enraizados na comunidade nativa pela sua origem local e habilitados com uma formação superior, dificilmente se poderia esperar que se afastassem do seu povo nas suas tendenciais aspirações de libertação e nas reiteradas queixas contra o colonialismo português.

Vejamos como eles próprios caracterizavam a sua condição de vítimas do regime colonialista.

Em Outubro de 1963 os padres angolanos exilados na Metrópole tomam a sua própria defesa perante o Núncio Apostólico acabado de acreditar em Lisboa. Sinalizam então que «a nossa situação deriva de princípios que vêm de longe e de graves problemas de consciência». Dizem em modo de crítica que «foi sempre princípio da missionação portuguesa (... ) não fazer cristãos sem os fazer - por isso mesmo e simultaneamente portugueses.»

Regista-se com clareza o principal problema de consciência dos padres compulsivamente afastados das suas funções sacerdotais:

«O egoísmo e o interesse do colonizador são os únicos critérios; donde o esforço de acabar gradualmente com as tradições, as línguas, os costumes e as  ideias  do colonizado. Ligados pelo sangue e pelas tradições ao Povo, não podíamos nós sacerdotes angolanos, deixar de sentir as mesmas aspirações e sofrer as mesmas amarguras.»

 E quanto à sua intervenção política e apostólica, escrevem negando a sua participação nas insurreições ou quaisquer comportamentos racistas. Dizem:

O Governo, porém, considerou prejudicial à sua linha de conduta o nosso procedimento de absoluta isenção de colaboracionismo (... ). Para ele, o pretexto  de evangelização criou o direito de colonização, não apenas em princípio, mas até na sua peculiar modalidade de impor uma pátria, quer queiram ou não os colonizados. E [criou] o chamado "colonialismo missionário", que o regime pensa termos atraiçoado com  a nossa atitude de não colaboração (de não alinhamento). Já antes dos grandes acontecimentos de 1961, as autoridades adoptaram  o sistema de prender, separar, isolar e exilar todos os angolanos com autêntica personalidade e prestígio pessoal no meio. A nossa vez chegou quando o terror invadiu os espíritos e todos os meios pareceram justificados e legítimos. Nós sabemos que a emancipação de Angola se há-de efectivar, cedo ou tarde, com ou sem a Igreja. (... )Com este espírito de apostolado, sofremos a prisão, o exílio, as torturas físicas e morais, as incompreensões, o desprezo,  as acusações tão falsas quanto ignóbeis, as difamações  mais maquiavélicas, o abandono e as restrições nas próprias liberdades sacerdotais. E esta situação eterniza-se sem esperanças de solução para nove sacerdotes.»

O distanciamento do chamado «colonialismo missionário» significa que renegam o compromisso que lhes estava imposto pela regulamentação, pós concordatária de 1941. Registe­ se o «paradoxo da relação da Igreja com o colonialismo: tendo sido aliada deste contribuiu para "produzir" anticolonialistas dispostos a derrubarem-no.»

Paradoxo que mais se exacerba quando confrontamos a intervenção política desses padres nativos com a posição do clero metropolitano. Diz-se na "Nota Pastoral sobre o Ultramar Português", divulgada pelo episcopado em 13/1/1961, à beira portanto do início da insurreição angolana:

«Os bispos da Metrópole, atentos à responsabilidade do seu múnus pastoral, recordam aos fiéis que lhes estão confiados os evidentes desígnios de Deus sobre a nossa Pátria. A linha providencial da nossa história tornou-nos, desde  há muitos séculos, instrumentos do Senhor na evangelização de parte considerável do Mundo (...).A assinatura do Acordo Missionário de 7 de Maio de 1940, foi como que uma nova investidura pela Santa Sé da missão civilizadora da Nação Portuguesa.» A nenhum católico é lícito ligar­ se na empresa política àqueles que negam Cristo. Neste momento estão em jogo para os Portugueses outros valores, nomeadamente o da Pátria; votar em Deus é votar em todos estes valores.»

Foram afastados do território angolano em 1960/1961os sacerdotes Joaquim da Rocha Pinto de Andrade, Chanceler da Arquidiocese, Cónego Manuel Franklin da Costa, Alexandre do Nascimento, Vicente José Rafael, Cónego e Monsenhor Manuel Joaquim Mendes das Neves, o Vigário Geral, Lino Alves Guimarães, Alfredo Osório Gaspar, Martinho Samba (Manuel Martinho Campos) e Domingos António Gaspar.

A principal acusação de que são alvo pela PIDE é a de serem adeptos e pugnarem pela independência do território, razão suficiente de incriminação de qualquer nativo ou residente na Província. Raras são as suas declarações explícitas nesse sentido, mas a polícia identifica múltiplos indícios ou argumentos que "provam" o seu separatismo. Inédito por isso que o Pe. Domingos António Gaspar reconheça no seu depoimento de 15/5/1961 que «em abono da verdade por ter nascido em Angola é apologista da independência» e que tenha manifestado esse seu desejo aos nativos com quem conversa e anima no sentido de tomarem conta dos seus próprios destinos. As homilias de alguns - ou textos publicados na imprensa local - são classificadas como prova evidente de um proselitismo independentista. Os que dirigem paróquias rurais - Lino Guimarãe, Alfredo Gaspar e Domingos Gaspar - são evidentemente acusados de manterem uma relação com os seus paroquianos repleta de intuitos independentistas. O respeito pelos usos e costumes gentílicos e a utilização das línguas nativas na prática religiosa são também indícios incriminatórios. Mas as conclusões da PIDE resultam essencialmente de indícios indiretos obtidos pela observação dos laços que esses sacerdotes estabelecem com a vasta comunidade de insurgentes que habita as sanzalas ou os musseques da cidade.

A perseguição policial começa praticamente desde que a PIDE se instala no território em 1957. Na primeira grande iniciativa repressiva (de Março de 1959, o depois chamado "processo dos cinquenta") em que são investigados e punidos um pouco mais de meia centena de ativistas que se dedicavam sobretudo a uma intensa atividade panfletária - são dados como arguidos, embora não pronunciados e muito menos presos ou interrogados, Manuel das Neves, Pinto de Andrade, Franklin da Costa e Alexandre do Nascimento.

Os diversos depoimentos atribuídos aos presos neste processo identificam estes padres como integrando as redes de contactos que clandestinamente suportavam as suas atividades secessionistas. E nessas redes teriam particulares responsabilidades que a direcção da PIDE sistematiza, aguardando decisões superiores .

A PIDE insiste então sobre a necessidade de punir Joaquim Pinto de Andrade. A polícia não lhe perdoa o seu prestígio social. Anota «que a sua posição social faz dele pessoa responsável pela boa conduta de gentes que lhes compete educar e não apoiá-las num movimento de traição à Pátria.» Acabaria preso em meados de 1960, na circunstância da repressão do grupo do MPLA dirigido por Agostinho Neto, e só seria libertado depois de vários períodos de reclusão em 25 de Abril de 1974.

Paradoxo entre a intervenção política e a posição do clero

 

Alexandre do Nascimento alude no seu diário a um «processo dos padres»: «Dizem-me que o Tribunal extraiu dos processos que lhe foram entregues a parte referente aos padres e que o remeteu à PIDE para que averiguasse". O relatório final do segundo o " processo dos cinquenta" referencia acusatoriamente alguns sacerdotes que, contudo, não foram, então, presos nem interrogados.

Não haverá um «processo dos padres», mas sim um articulado conjunto de decisões repressivas que visam intimidar e decisivamente silenciar, pela deportação e pela reclusão, os que se evidenciaram, aos olhos da PIDE, como factores impulsionadores de subversão.

Todos são acusados de "racismo" com alguma soma de pormenores sobre as circunstâncias em que tal atitude se revelara. Alguns são mesmo acusados de discriminação no acesso de brancos a sacramentos rituais. As suas actividades públicas ou pastorais são analisadas minuciosamente.

A informação mais antiga que consta do processo de Alexandre do Nascimento, data de 8 de Fevereiro de 1957, e é o relato de uma discussão havida na Liga Nacional Africana quanto à organização de «uma manifestação de repulsa pela forma como estava a ser resolvida pela ONU a questão das Províncias Ultramarinas Portuguesas», a que se oporia o Pe. Nascimento conjuntamente com o cónego Franklin, entre outros.

No final desse ano de 1957 a PIDE analisa um discurso que Nascimento terá proferido perante o Núncio Apostólico em visita a Luanda em que falou «sempre em termos de elevação para os da sua raça e sem nunca falar da obra dos portugueses em  África.»  «esquecendo, propositadamente, a Obra Missionária levada a cabo por Portugal.» É também acusado de racismo e altivez por parte de um outro padre (não identificado), isto em Dezembro de 1958. São aliás frequentes denúncias de sacerdotes brancos, metropolitanos, de racismo ou de falta de "portuguesismo".

O cónego Franklin é impedido de voltar a Angola em Agosto de 1960 (passara por Lisboa a acompanhar o Arcebispo numa viagem a Roma), quanto se sabe por denúncia de outro sacerdote. Diz o Governador Geral em telegrama para o M. Ultramar:

«Um padre branco veio espontaneamente falar comigo sobre as suas  preocupações sobre os padres negros. Disse que as coisas tinham piorado e que o Seminário  de Luanda é uma verdadeira escola de formação revolucionária. Disse que o padre Franklin que acompanhou o Arcebispo à Metrópole e se encontra em Lisboa é um dos piores elementos e que não deveria ser autorizado a regressar e que o padre Nascimento é altamente pernicioso e devia ser proibida a sua permanência em Angola. Os factos denunciados já eram do conhecimento do Governo. Falei com o Director da PIDE que pensa também não dever ser autorizado o regresso do padre Franklin e que quanto ao padre Nascimento oportunamente proporia o que tivesse por conveniente.»

A PIDE não perdoa tudo quanto possa ter implicações externas no conhecimento do que se passava em Angola, designadamente através de despachos dos consulados estrangeiros em Luanda (cujo correio controla). Uma das fixações da polícia é a participação de alguns destes sacerdotes em contactos com delegados africanos a uma reunião que a OIT organiza em Luanda nos finais de 1959. A denúncia do que se passava então em Angola (mantinham-se presos centenas de ativistas) certamente animou esses contactos.

Nomeadamente as relações com missionários ou dignitários protestantes são sempre referenciadas em tom acusatório. Joaquim Pinto de Andrade e Manuel das Neves colaboram com missionários protestantes na receção e acompanhamento de membros do American Comittee on Africa, uma organização americana muito ligada à Igreja Metodista, que visitam Angola em princípios de 1960. Os visitantes no seu regresso à América divulgariam comentários nada abonatórios do colonialismo português.

O independentismo de que todos são acusados radica no conhecimento que a polícia tinha das ligações estreitas que os padres mantinham com as organizações que clandestinamente militavam contra o colonialismo português. Quase todos são acusados de pertencerem à UPA ou ao MLA, uma outra sigla utilizada pela UPA. Ou de terem relações mais ou menos explícitas com os diversos grupos clandestinos que se movimentavam em Luanda. Joaquim Pinto de Andrade confessa, ao explicar a forma como se relacionara com o multifacetado movimento independentista em Luanda, que «eu tanto tinha afinidades com o MIA, como tinha com o MINA, como tinha com o PLUA. Eu andei um bocadinho no meio desses todos. (... ) «E tinha uma vontade de procurar uma coisa comum, que era política, que era a independência do país.»

Os sacerdotes residentes em Luanda são acusados de serem autores de panfletos que as diversas organizações produziam e distribuíam dissimuladamente na cidade. É o caso dos "Manifestos Africanos" da autoria do grupo MIA, Movimento para a Independência de Angola. A maior qualidade estilística e ortográfica de alguns deles sugere autorias qualificadas que podem  de facto confirmar essas suspeitas da PIDE. Mas, se uns são acusados de participarem na sua feitura, todos o são por os receberem ou distribuírem. Afirmação extensiva a documentos introduzidos em Angola a partir do Congo Belga e nomeadamente ao trilingue jornal da UPA.

Uma das iniciativas que chama a atenção da PIDE é a preparação em Outubro de 1959 de uma associação de ex-seminaristas patrocinada por alguns destes sacerdotes e muito em especial por Vicente Rafael, que também se empenha noutras iniciativas associativistas. A pretendida associação de ex-seminaristas congrega cinco dezenas de indivíduos, maioritariamente negros, que constituem pela sua mais elevada formação escolar uma elite que, na cidade de Luanda, se envolverá em diversas redes clandestinas de luta anticolonial.

Dos nove sacerdotes africanos que entre 1960 e princípios de 1961 são afastados do território angolano, três têm a seu cargo paróquias rurais (Alfredo Gaspar, Domingos Gaspar e Lino Guimarães), o que não obsta a que mantenham contactos e relações carregadas de significado político com os demais residentes em Luanda. As acusações que lhes são dirigidas são claramente inverosimeis.

 

As prisões, traições, acusações e julgamentos premeditados

O Pe. Alfredo Gaspar é acusado de agitar os indígenas com intuitos separatistas, mas, afinal, segundo Pinto de Andrade, «teve uma acção muito importante junto das populações, promovendo aquelas populações e defendendo-as contra a espoliação das suas terras pelos colonos que vinham ocupá-las.» Quando preso escreve aos seus acusadores:

«O único motivo porque estou preso é simplesmente por ser africano e recearem a minha actuação pelo lugar que ocupo neste concelho... » «Sou português e dentro das minhas veias circula um sangue misto de preto e de branco, que me toma talvez suspeito a pretos e a brancos. Manda, porém, a boa lógica julgar os homens pelos seus actos e não pela cor, que é um mero acidente.”

O Pe. Domingos Gaspar é também vítima de acusações por parte do Administrador da zona onde dirige a sua paróquia que, apesar de presumivelmente infundadas, suportam a sua prisão. Os " acusadores", constata-se depois, mentiram «com receio de que se assim não procedessem viessem a sofrer maus tratos.»

Lino Guimarães é vítima do mesmo tipo de acusações. Acabaria assassinado pelos seus acusadores, fazendeiros brancos, aquando do seu regresso a Angola em 1969.

A declaração que Joaquim Pinto de Andrade lê para os autos quando da sua prisão de 1960 de algum modo exprime com clareza aquilo que seriam as convicções de todos:

«Sem ter dado a minha adesão formal a nenhum movimento ou partido político, não tenho deixado todavia  de me interessar, na medida em que mo permitem  o meu carácter e as minhas actividades sacerdotais, pelos anseios que os animam e pelos problemas que os preocupam. Na linha do melhor pensamento filosófico e teológico, na  esteira  da grande tradição cristã e dos ensinamentos dos últimos Papas e dos Bispos em comunhão com eles, considero o anseio à independência justo e razoável. Um deles diria que a independência está para um país como a liberdade para o indivíduo. (... ) Na minha qualidade de sacerdote, de africano e natural desta terra, tenho dos problemas que preocupam este povo um conhecimento directo e por assim dizer vivencial. E vivo-os com a sensibilidade particularmente aguda de quem se sente deles solidário pelas vozes do sangue e pelas amarras da história (... ). Claro está que um sacerdote pelas suas funções deverá servir de elemento moderador e esclarecedor. Mas isso não significa nem o alheamento, nem a indiferença. É ainda Pio XII quem disse que é preciso lutar e destruir esta mentalidade, hoje tanto em voga, que pretende confinar a presença e a acção da Igreja às quatro paredes frias de uma sacristia.»

 

Um cónego acusado de partidário da independência

Deste conjunto de sacerdotes africanos destaca-se a figura de Manuel Joaquim Mendes das Neves, a quem a PIDE atribui particulares responsabilidades na luta pela afirmação de um nacionalismo angolano. Foi preso e repetidamente interrogado a seguir aos acontecimentos de Fevereiro e Março de 1961. A PIDE acusa:

«O arguido cónego Manuel das Neves era o mais categorizado membro da UPA nesta província. Como partidário da independência, passou por assim dizer, a ser o orientador máximo de toda a vida da UPA, desempenhando um papel predominante na recolha de "fundos" Estava em estreita ligação com os dirigentes da UPA no Congo ... "

De facto, desde cedo ligado à UPA e às organizações que a precedem, colabora com o MLA no território e é acusado de elaborar e fazer distribuir panfletos independentistas. A sua filiação na UPA está referenciada desde cedo. Tem uma diligente intervenção na recolha de fundos. Mantém relações  estreitas  com a  direção  daquele  partido  no Congo,  sob  o  pseudónimo  de " Makarius", e apoia a fuga para este país de quadros locais da UPA. É um dos principais animadores de uma iniciativa que visava restaurar a imagem pública da rainha Njinga Mbandi, como uma heroína da contestação da presença portuguesa no território. É a referência de todas as situações em que se concretiza a presença de dignitários estrangeiros na Província, sejam os delegados de uma reunião da OIT, ou os membros do American Comittee on Africa, ou o emissário de Humberto Delgado que procura obter o apoio da UPA para uma eventual aportagem do Santa Maria a Luanda.

A prisão só ocorre depois da eclosão dos acontecimentos de Fevereiro e Março. A PIDE estará convencida que o Cónego é um dos principais mandantes dessas perturbações e é essa comprovação, em boa parte, o objetivo dos nove interrogatórios a que Manuel das Neves é sujeito em Luanda e Lisboa. A polícia não consegue mais do que responsabilizá-lo, também  enquanto sacerdote, pelo facto de, tendo conhecimento prévio do que ia passar-se, nada ter feito para o evitar.

Mas as responsabilidades de Manuel das Neves quanto ao "4 de Fevereiro" são bastante mais vastas, designadamente no que respeita à logística da operação. A sua palavra é determinante para o desencadear das operações em 4 de Fevereiro, fazendo-as coincidir com a presença de jornalistas estrangeiros, curiosos em seguir a eventual chegada do Santa Maria a Luanda. A operação não teve êxito mas saldou-se por um rotundo êxito comunicacional por evidenciar a existência de um confronto, sempre iludido pelo regime, entre colonizadores e colonizados, entre brancos e negros.

Diversos depoimentos e testemunhos orais identificam no Cónego a palavra decisiva para o arranque das operações. Citemos, entre eles, o de um dos operacionais, Salvador Sebastião:

"O cónego Manuel disse para o respondente que se viesse a conhecer alguns dos assaltantes, os avisasse que estavam autorizados a praticar os assaltos e que o dia estava marcado e que era preciso não falhar. Disse a todos os presentes que o senhor cónego Manuel havia dado ordem para os assaltos e que os mesmos teriam que ser feitos no dia que estava marcado, não podendo falhar o dia indicado."

 

Convergem no mesmo sentido depoimentos, designadamente, de Neves Bendinha, João Nunes de Carvalho, Miguel Correia de Oliveira, Agostinho Mendes de Carvalho, Afonso  Dias  da Silva, João César Correia, Paiva Domingos da Silva, Joaquim Pinto de Andrade, Jaime de Sousa Araújo e, em entrevista ao Jornal de Angola, Agostinho Miguel Inácio "kisekele". Holden Roberto confirmaria mais tarde que fora o Cónego quem havia "arquitectado" aquilo a que também designa de "tentativa de sublevação". A Manuel das Neves são também imputadas a escolha dos chefes de grupo e a ordem dada a Joaquim Sapateiro para a destruição da lista de quotizados que sob pseudónimo tinham contribuído para o financiamento da operação (o que permite uma outra analogia com o tipo de procedimentos adotado pelo Movimento para a Libertação de Angola, o MLA). Teria também incitado ao prolongamento da revolta nas semanas seguintes.

Estas conclusões são partilhadas por muitos dos que noticiaram ou analisaram o "4  de Fevereiro". Contudo a PIDE não assimila estas aparentes evidências não só porque o cónego nos seus depoimentos prestados sob prisão as não confirmam (limita-se a confirmar que teve conhecimento prévio da intenção dos revoltosos mas que inclusivamente desaconselhou o  uso de violência). Por outro lado um primeiro relatório alegadamente redigido e remetido por Manuel das Neves para a sede da UPA no Congo indiciava o seu distanciamento da intentona. Este relatório datado de dia incerto de Fevereiro, intercetado pela PIDE quando a caminho do Congo, foi o pretexto para a captura e prisão do cónego. Foi depois desconsiderado pela PIDE talvez porque outras evidências se impuseram. Mas é de facto o conhecimento deste texto que leva o casal Mateus, autor de um estudo das revoltas de Fevereiro e Março em Angola e, mais recentemente, a Valentim Alexandre a desmerecer da intervenção de Manuel das Neves nos acontecimentos.

O que é certo é que um segundo relatório este certamente da sua autoria e que conseguiu chegar ao seu destino confirma implicitamente a vinculação do padre aos eventos e também a sua estreita ligação com a UPA.

• Não ignoramos a controvérsia que esta participação de Manuel das Neves suscita entre os diversos autores que se dedicaram ao "4 de Fevereiro". Contudo as nossas preocupações com o estudo integral das fontes disponíveis e o cruzamento de dados garantem fiabilidade às nossas conclusões. O Cónego Manuel das Neves, enquanto associado às movimentações da UPA na Província, teve um papel decisivo no desencadear dos assaltos,  no  aproveitamento  das condições favoráveis proporcionadas pela presença de um numeroso grupo de jornalistas estrangeiros. Não só no desencadear mas também na preparação - obtivera mapas  da cidade onde se assinalaram os pontos a atacar, favoreceu a compra de catanas, de que algumas guardou atrás do altar-mor da Sé como o próprio confessa em carta ao seu arcebispo enquanto preso.  Terá intervindo na preparação de cifras e na sua distribuição.

Recordando o que escrevemos no esboço de biografia política que lhe dedicámos.

"O facto, incontroverso, de Manuel das Neves ter sido procurado para legitimar com a sua palavra os assaltos só pode significar que a sua urdidura lhe era imputada pelos operacionais que os promoveram no terreno. E tudo o que se apurou o confirma."

"Em conclusão, compulsados todos os dados aqui disponibilizados cremos que não será mais possível duvidar do papel maior de Manuel das Neves na eclosão do "4 de Fevereiro", refutando-se assim, decisivamente, a opinião dos que pretenderam confinar a posição de Manuel das Neves a uma simples "inspiração" ou "apoio espiritual" ou restringir   o   seu  papel  ao  de  um  simples  participante,  mesmo  que  apelidado   de "incentivador", "obreiro" ou inexplicado "coordenador". E também relativizando os testemunhos que o dão como convictamente afastado da utilidade e da necessidade da violência revolucionária."

Mendes das Neves morre no exílio. Os demais só são autorizados a regressar a Angola a partir de 1969, em plena "primavera" marcelista, embora politicamente condicionados por restrições quanto à sua liberdade de expressão. O "pecado" capital de todos é a ambição da independência que alguns justificam com naturalidade e alguma ingenuidade. Um outro padre, Joaquim Bunda (Joaquim Furtado Trindade), também investigado diz ser natural falar-se de independência:

«pois o ambiente geral então existente permitia que brancos e nativos se referissem a tal assunto claramente e sem qualquer receio» (... ), «que quase todos os  angolanos, brancos e negros, especialmenteos nativos, esperavam que, num futuro breve,  de  Lisboa, o Governo daria a independência  aos dois territórios -  Angola e Moçambique - a exemplo do que outros países europeus assim fizeram.»

O prestígio deste clero católico angolano é, em boa medida, tributário do estímulo com que sempre contou da parte do Arcebispo Moysés Alves de Pinho, que a dois deles fez cónegos e a quem cometeu os mais altos cargos da Arquidiocese, os de Vigário-geral e o de Chanceler. Proporcionou a três deles a oportunidade de cursarem na Universidade Pontifícia de Roma. O Arcebispo é acusado pela PIDE de favorecer a formação de sacerdotes negros no Seminário, aliás dirigido, até à sua expulsão do território, por Alexandre do Nascimento.

Pedro João Cassule Manuel Manuel

• Desejo fazer parte da equipe e actuar na ária de informática. Acredito que poderi executar meus conhecimentos teóricos e práticos e ajudar no crescimento da empresa e do grupo de trabalho.

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