Nair Almeida: “No desporto as relações humanas sempre foram de uma grande pureza”

 

Nair Almeida: “No desporto as relações humanas sempre foram de uma grande pureza”

Silva Cacuti

Jornalista

Não é apenas um nome. É um vulto do andebol angolano e internacional, nascido na cidade portuária do Lobito. Fez-se andebolista, na Escolinha da Restinga e, de lá, subiu, degrau a degrau, até chegar ao topo.

27/03/2023  ÚLTIMA ATUALIZAÇÃO 12H48
© Fotografia por: DR

Do seu pecúlio de atleta constam dezenas de títulos nacionais e africanos pelo Petro de Luanda e 1º de Agosto. Pelas "Pérolas”, designação da Selecção Nacional, a craque soma cinco conquistas do campeonato africano de seniores, quatro presenças em mundiais e três em jogos olímpicos. No dirigismo desportivo, onde entrou em 2016, já soma vitórias a um ritmo que quase se assemelha aos tempos de atleta. A convidada do Jornal de Angola, arrepende-se de não ter aceite, ao menos um, dos muitos convites que teve para  jogar na Europa. Mas a sua satisfação por tudo que o andebol significa, não fica diminuída por esta opção. Nas vestes de dirigente, Nair já começa a ter a mesma desenvoltura que teve dentro das quadras.


Há mais de sete anos (26 de Fevereiro 2016) abandonou as quadras, como atleta e, quase que automaticamente, iniciou a carreira no dirigismo desportivo. Conte-nos como tem sido esta trajectória de dirigente, até chegar à vice-presidência da FAAND.

Como é do conhecimento quase generalizado, andei muitos anos dentro da quadra de jogos. Muito nova, ainda pré-adolescente, iniciei a prática do andebol até chegar ao mais alto nível competitivo. Depois, naturalmente, tive que me retirar, porque percebi que era chegada a hora de o fazer. Tendo adquirido vasta experiência enquanto jogadora, houve pessoas que entenderam que eu poderia continuar a dar o meu contributo para a melhoria do nosso andebol fora das quatro linhas. Foi nessa senda que acabei convidada para integrar o elenco directivo do Clube Desportivo 1.º de Agosto, no mandato 2016-2020 e depois para integrar a Direcção da Federação Angolana de Andebol (FAAND). Também estou na Associação Angolana a Mulher e Desporto (AMUD), uma organização sócio-desportiva, se assim posso considerar. Portanto, a minha trajectória no dirigismo desportivo obedece a uma certa lógica, não havendo aqui qualquer "segredo”.  

 

Tem acompanhado a evolução do andebol de formação? Tem visitado a escola da Restinga, onde se formou?

Naturalmente enquanto vice-presidente desportivo da FAAND tenho que ter contacto directo com o andebol de formação. Eu e os demais membros da Direcção temos prestado particular atenção à formação, uma das nossas principais apostas. Estamos a par do que se vai fazendo um pouco por todo o país, não só por via de informações que vamos recebendo, mas, sobretudo, por via de constatação que fazemos em diferentes províncias do país, onde, na medida do possível, temos distribuído material desportivo para dar sustentabilidade à formação. Como é óbvio e porque algumas vezes vou à minha terra natal que é o Lobito, não deixo de visitar a Escolinha da Restinga. Muitas vezes o faço de modo privado e não institucional, e mesmo quando não consigo mantenho contacto com a Direcção da mesma, e consigo estar sempre actualizada sobre as actividades por eles praticadas.

 

Acha que há algum dever dos atletas para com as escolas que os formaram? Se sim, os atletas têm cumprido tal dever? Porque, não só no andebol, vemos muitas escolas de gerações de atletas a desaparecer aos olhos daqueles que formaram.

Legalmente, e todos o sabemos, não há dever nenhum. A vida é dinâmica, feita de ciclos e a nossa formação, seja onde for, é apenas um ciclo das nossas vidas. Creio, entretanto, que para dar continuidade à formação, de modo a no futuro vermos mais pessoas singrarem, deveríamos ter a obrigação moral de ajudarmos as nossas "casas de nascimento” como atletas. Nem todos, contudo, conseguem fazê-lo, por várias razões. Uns por indisponibilidade de tempo, outros por ausência de recursos financeiros e outros ainda por falta de conhecimento suficiente para o efeito.

 

Se tivesse a oportunidade de decidir o rumo da vida, voltaria a fazer o percurso que fez através do andebol?

É óbvio que sim. O andebol deu-me muito do que tenho e do que sou. Não fosse o andebol, provavelmente, não teria atingido o patamar que atingi, inclusive socialmente. O desporto em geral e o andebol em particular são "mundos” onde conhecemos muita gente, fazemos amizades, compadrios e, às vezes, até casamentos. O facto de tornar-me conhecida através do meu trabalho, deve ser exemplo para muitos jovens e incentivar muitos outros a prática da modalidade foi um ganho pessoal.

Aliado ao prazer de ter ganho vários títulos nacionais e africanos, pan –africanos, e várias participações em campeonatos do mundo e jogos olímpicos.  De um modo geral, no desporto as relações humanas são de uma grande pureza, o que cria o espírito de entreajuda. Eu e muitos do andebol beneficiamos imenso disso. Por isso, eu, particularmente, voltaria a fazer o mesmo caminho até porque não há nada melhor do que fazer o que gostamos e nos dá prazer, aliando isto a boas compensações materiais.


MÁGOA REGISTADA


Há alguma coisa, uma opção que tenha feito, no andebol de que se arrepende?

Dizer que não me arrependo de nada que fiz na vida é burrice. Obviamente que todos nós nos arrependemos de uma coisa ou de outra que fizemos.

Hoje acho que devia ter ido jogar para o campeonato europeu, participar de uma Liga dos Campeões, jogar numa equipa de referência, acho que faltou completar essa etapa no meu currículo desportivo embora tenha recebido durante anos vários convites para actuar em equipas de topo na Europa.

Por outro lado, no meu caso, do que me arrependo de ter feito no andebol é algo da esfera muito privada e não acho curial partilhar com mais ninguém.

   

Trabalha fora do andebol, é dirigente, ao mesmo tempo mãe e esposa. Como tem conseguido conciliar todas as facetas?

A partir da altura em que nos comprometemos com "ene” tarefas, temos de ser capazes de as cumprir. É isto que tenho feito. Com muita disciplina e metodologia tem sido possível conciliar todas as facetas. Muito mais nesses tempos em que as tecnologias de informação nos ajudam em diferentes tarefas. E não só há tempo para tudo isso como também há tempo para o entretenimento e o convívio familiar.

 

A fama conseguida pelo vosso desempenho nas quadras tem ajudado nesta conciliação ou embaraça?

Ajuda imenso. E como ajuda! Nas quadras tínhamos fracções de segundos para decidir em situações difíceis. Havia que ter "mente de aço”. Fora das quadras há mais tempo para pensar e tomar as decisões certas.


Federação continua a ter seriedade e profissionalismo

Como estão a ser encarados e perspectivados os compromissos para o presente ano das diversas selecções nacionais?

Os compromissos são encarados com a mesma seriedade e profissionalismo de sempre. Isto inclui proporcionar a melhor preparação possível às nossas Selecções Nacionais. Para as selecções nacionais em juniores feminino e cadetes, estamos a preparar as condições necessárias para que tenham a melhor classificação nos africanos em Setembro. A  Selecção Nacional júnior masculina vai representar o país no Campeonato do Mundo na Alemanha e Grécia. A selecção sénior masculina não tem compromissos internacionais, mas não significa que não vá participar em ne-nhuma actividade. A Selecção Nacional sénior feminina terá o apuramento para os Jogos Olímpicos de Paris, em Outubro, que será realizado em Angola, e o ano termina com Campeonato do Mundo em seniores Feminino em Dinamarca, Noruega e Suécia.

 

Em 2022 tivemos uma má prestação da selecção sénior masculina no "africano”, ao conseguirmos a pior classificação de sempre. Há, a nível da FAAND algum "plano de recuperação”, para voltar a colocar os "Guerreiros” entre as três melhores do continente? 

Não é verdade que o oitavo lugar (entre 13 selecções) do "Africano” do Cairo em 2022 tenha sido a pior classificação de sempre. Desde já gostaria de repor a verdade dos factos, lembrando que a nossa pior classificação de sempre foi o nono e último lugar na estreia em 1979, no Congo, quando fomos participar após um convite do país organizador, formulado quatro dias antes do início do evento. Posto isto, apraz-me dizer que tudo teve que ver com o desafio com Cabo Verde para os quartos-de-final. O que aconteceu foi uma fatalidade. Angola podia ganhar o desafio. Depois de perder o jogo contra Cabo Verde, a equipa desabou mentalmente, o que é normal, pois perder naquelas circunstâncias era doloroso demais. A Guiné-Conacri, que venceu Angola nas qualificativas do quinto ao nono lugar, tinha perdido com Angola, dias antes, no estágio, no Cairo. Se houvesse superioridade dos adversários nessas partidas, a preocupação seria muito maior. Mas não foi isso o que sucedeu. Em qualquer dos encontros, Angola poderia ter ganho. Em desporto isso acontece com frequência. Mas é bom que se tenha em conta que as Selecções Nacionais são em primeira instância reflexo da competição em que os jogadores estão inseridos e do trabalho realizado nos clubes, dai a importância de revermos os moldes de competição interna, de modo a tornarmos os campeonatos mais competitivos.

 

É possível a curto prazo?

O Plano está gizado há muito tempo: melhoria da competição interna. Mas não depende apenas da federação. Sem competição interna forte e sem uma base de recrutamento externa qualitativamente ampla, teremos muitas dificuldades nas provas continentais. Para suprirmos este problema incentivamos a aposta na formação. O problema é que mais de metade dos jogadores da formação desistem quando são seniores, porque não há clubes que os absorvam, pois muito poucos competem ao nível de seniores. Atentemos ao exemplo do Kabuscorp: já foi campeão nacional, mas há muito tempo que desistiu da competição. Com isso, diminui substancialmente a qualidade no topo, onde seleccionamos os jogadores das equipas nacionais. Mas não vamos desistir. Continuaremos a trabalhar arduamente para que voltemos a ter a Selecção nacional masculina no topo.   


COMPETITIVIDADE

Como está o nosso andebol no quadro competitivo internacional?

Em regra, o desporto é reflexo do estágio de desenvolvimento das sociedades. Se reparar nas classificações dos Jogos Olímpicos e dos Campeonatos do Mundo, há de constatar que no topo estão as nações mais desenvolvidas do mundo, as principais economias. Isto porque, há uma relação directa entre desporto e economia. Quanto mais pujante for a economia de um país, à partida, este tem maiores probabilidades de vingar no desporto de alto rendimento. Logo, sendo nós um País Menos Avançado (PMA) estamos no lugar em que, à partida, deveríamos estar, em termos intercontinentais. Em rigor, julgo que estamos muito bem, se tivermos em conta que quase sempre nos classificamos à frente de países com um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) muito superior ao nosso. Objectivamente, penso que o nosso horizonte é a África, e estamos bem, juntando o masculino e o feminino, sem descurar o desejo de melhoramos as nossas performances a nível de campeonatos do mundo e jogos olímpicos. 

 

Temos perspectiva de manter por muito tempo o domínio sénior feminino em provas de clubes e selecções? E o masculino, o que pode ser feito para dar o salto?

É difícil responder a esta questão porque obriga-me a fazer futurologia. De qualquer modo, em face dos elementos disponíveis é possível fazer uma projecção. Na minha óptica, vai ser cada vez mais difícil manter a hegemonia nos seniores femininos, principalmente ao nível de selecções. Vários países têm investido imenso nos últimos anos e apostam tudo para desapossar Angola da medalha de Ouro. Um caso paradigmático é o do Senegal. O país não tem competição doméstica, mas possui uma selecção nacional bastante forte. Como? Recrutando jogadoras da Liga Francesa, descendentes de senegaleses, algumas das quais nem sequer conhecem o Senegal e algumas até já representaram a selecção francesa de seniores, o que levou alguém , numa qualquer competição, chamar pejorativamente de França B. Logicamente que não concordo com este tipo de tratamento, pois as dinâmicas sociais da aldeia global em que o Mundo se transformou levam-nos a jogar com equipas como a do Senegal. Atente-se ao exemplo da selecção de basquetebol da Nigéria que ganhou aos EUA na preparação para os Jogos Olímpicos Tóquio’2020.

Para mantermos a hegemonia precisamos ter uma competição doméstica forte, que proporcione um alto volume de jogos às jogadoras seleccionáveis. Para termos esta competição forte precisamos ter mais clubes como o Petro-Atlético de Luanda e o 1.º de Agosto. Para termos mais clubes como estes, precisamos de dinheiro. Este é o busílis da questão. Não tenhamos ilusões que nas nossas condições de PMA necessitamos da intervenção do Estado para praticarmos desporto de rendimento. Infelizmente o que temos estado a constatar é o desaparecimento de clubes. Um caso paradigmático é o do GD da Marinha de Guerra. Simplesmente desapareceu. E espero que, a despeito dos problemas que atravessa, o 1.º de Agosto não deixe de ter a pujança competitiva que sempre teve. Porque se deixar de ter, quem se vai ressentir são as Selecções Nacionais. 

 

É o mesmo problema identificado no masculino?

O problema do masculino é basicamente o mesmo. Falta de competição interna, decorrente da falta de investimentos nos clubes, algo que não depende da FAAND. Sem jogadores em número relevante a actuar fora do país em Ligas verdadeiramente competitivas – como o Senegal em femininos ou Cabo Verde em masculinos –, o campo de recrutamento é a competição doméstica. E sabemos que ao nível interno a competição não dá o necessário "endurance" aos jogadores. Não podemos aspirar a muito mais, quando temos apenas duas equipas a lutarem pelo título. Na verdade, acho que o que tem sido feito no masculino é positivo. Vai muito para além do que seria expectável, à luz dos investimentos que outros países africanos fazem.      


  NA CONFEDERAÇÃO AFRICANA

"Representatividade é boa demais”

Como encara a representatividade de Angola a nível confederação?

É boa demais e reflecte o que Angola representa no andebol africano. Nesse capítulo não nos podemos queixar, pois nessa altura somos dos países melhores representados. 

 

E como está a região. Angola está satisfeita por estar numa região onde quase não se joga o andebol?

É óbvio que não podemos ficar satisfeitos. Culturalmente, o andebol não é uma modalidade muito praticada nos países anglófonos que são a maior da Zona VI. Se vires as competições europeias, não há nenhum país anglófono no topo. E isso replica-se em África. O que estamos a fazer enquanto federação é incentivar países como a África do Sul – das maiores economias do continente – a popularizarem o andebol. Se a África do Sul o fizer, por arrasto, muitos países da região seguirão o mesmo caminho.

 

Não acha que se devia usar os títulos de clubes e selecções, a imagem de andebolistas angolanos, para influenciar o crescimento na zona austral do continente?

É, exactamente, isso que temos estado a procurar fazer e vamos intensificar nos próximos meses, com abordagens cara-a-cara, com os diferentes actores do andebol da região.

 

Tem havido contactos com as estruturas da zona, talvez para tentar inserir o andebol nos jogos da região!

Quando uma modalidade entra no programa de um evento como os Jogos da SADC, é para proporcionar espectáculo, algo a que o andebol ainda não tem condições de assegurar. Por esta razão, o primeiro passo é o que estamos a dar: tentar que a África do Sul e mais países tenham um andebol competitivo, de modo a influenciar as restantes nações da região a seguirem-lhes o exemplo. Depois disso, sim, podemos pensar na inclusão da modalidade no programa dos Jogos. 

Pedro João Cassule Manuel Manuel

• Desejo fazer parte da equipe e actuar na ária de informática. Acredito que poderi executar meus conhecimentos teóricos e práticos e ajudar no crescimento da empresa e do grupo de trabalho.

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